quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Cenas invisíveis

A cidade é rápida demais. Anda-se de um lado para o outro, sem se observar o que há pelo caminho. Cada qual com seu itinerário, com o tempo do relógio acelerado, com o relógio interno perdido. Ninguém se olha. Não há troca, não há encontros. Os olhares são vazios, olha-se através, para além. Para onde? Eu ainda não sei, e acho que não quero descobrir.

Segunda-feira, meio-dia. Caminho pela Avenida São João, procurando um cabideiro nas lojas de móveis usados. A quantidade de pessoas morando embaixo do Elevado me impressiona. Famílias inteiras, uma vizinhança formada. Mulheres, crianças. Faz muito frio, e muitas pessoas ainda dormem, apesar do trânsito e do barulho ensurdecedor. Confesso que fico apreensiva, e não sei muito por onde caminhar, como andar por ali. Envergonho-me disso. Quero olhar para aquelas pessoas, mas fico constrangida - quero olhar por quê? Caminho na calçada, acompanhando o comércio, e vejo muitos homens nestas calçadas, mendigando na porta das lojas. Os pedestres passam sem olhar. As pessoas desviam dos corpos como quem desvia do lixo, da merda dos cachorros. Apesar da minha indignação, fico paralisada. Não sei se continuo a caminhar por esta calçada, se atravesso a rua, tenho medo de passar embaixo do Minhocão. Mais uma vez, envergonho-me do meu medo. Sinto que me igualo às pessoas que passam sem olhar. A impotência nos animaliza.

Domingo, dez horas da manhã. Atravesso a rua para chegar ao trabalho, e vejo dois meninos, aproximadamente de 10 anos, descendo a rua correndo. Eles tem chinelos e sapatos velhos nas mãos, e gritam palavrões para um senhor de idade que atravessa a rua na direção contrária, visivelmente amedrontado. As pessoas no ponto de ônibus estão agitadas, incomodadas, mas silenciosas. Ninguém se olha, com medo de encontrar um olhar. Os meninos atiram os sapatos nas janelas do ônibus que está parado no sinal fechado. Riem um riso doente, sarcástico - não é uma risada de crianças. O riso deles me incomoda. O horror nos olhos dos adultos dentro do ônibus e na rua me incomoda mais ainda. Continuo parada na calçada, olhando para os meninos, mas eles passam por mim sem me perceber. Recuso-me a ter medo de crianças, sejam elas quais forem e de onde vierem. Os meninos seguem pela avenida movimentada, aterrorizando os transeuntes. Mais uma vez, sinto-me impotente perante a situação. Na portaria do trabalho, há alguns metros dali, ninguém percebeu a cena que acabara de ocorrer.

Terça-feira, vinte e uma horas. Caminho em direção à minha casa, experimentando novas ruas, para conhecer melhor o bairro. Descubro lanchonetes, farmácias, pizzarias, bares. Há uma vida noturna, happy-hours acontecendo em vários lugares. Está uma noite agradável, tem jogo de futebol na televisão, grupos se confraternizam. Passo por uma pizzaria, entro para pegar o número do disque-pizza - pode ser útil a qualquer hora dessas. Na esquina seguinte, um rapaz - provavelmente com a minha idade - está agachado no chão, revirando os sacos de lixo. Tenho vontade de atravessar a rua, mas não dá - estou muito próxima, e poderia chamar a sua atenção. Ele, no entanto, nem percebe a minha presença. Diminuo o passo, e tento ver o que ele faz. Vejo uma caixa de esfirras, com restos, e ele a retira do saco de lixo. Olho em frente, miro o horizonte, e sigo acelerada. Acho que, sem querer, descobri para onde se olha, no através.

Quinta-feira, dezenove e trinta. Sigo a pé para minha aula de dança, caminhando rápido para não me atrasar. Estou alerta, pois a rua, apesar do movimento dos carros, tem poucos pedestres. Há muitas pessoas nos pontos de ônibus, e muitos sacos de lixo do comércio espalhados pelas calçadas. É preciso desviar deles, sair da calçada por vezes. Os tapumes das obras atrapalham, impedem a visão total da rua, e isto me incomoda. É cedo, mas acho tudo muito escuro - o desconhecido é sempre escuro, faz parte da estranheza. Um homem bêbado grita na porta de uma casa, esbraveja, pragueja. Imagino que a mulher o tenha colocado para fora. Ele tenta falar comigo, mas minha insegurança faz com que eu apresse o passo e o deixe falando sozinho - péssimo. Talvez ele só quisesse um minuto de atenção. Meu receio, meu medo são maiores. Ouço um balbuciar misturado com uma cantiga ininteligível. Olho para os lados e não vejo nada. Procuro de novo e vejo, do outro lado da rua, uma mulher sentada na soleira de uma loja brincando com um bebê sentado à sua frente. Há tantos sacos de lixo na calçada, que eu demorei a vislumbrá-los ali. Não sei se a mulher é jovem ou velha; vejo apenas seus cabelos desgrenhados, presos desajeitadamente, maltratados. Suas mãos são magras, e eu vejo isso do outro lado da rua. Não vejo o rosto do bebê, imagino que tenha cerca de um ano. Ela canta algo que não compreendo, e eu tenho receio de andar sozinha por aqui, apesar do horário, e não posso parar para observar. Também não quero que ela me perceba e fique zangada. Vou embora imaginando quem serão eles, e porque estão ali. Penso que esta cidade é muito injusta, e que não há nada que se possa fazer. 

Penso que pensar assim é ficar invisível também.

Nenhum comentário:

Postar um comentário