terça-feira, 1 de março de 2011

Quem cuida de quem?

Imagine-se na seguinte situação: um dia de chuva pesada em São Paulo, vários e simultâneos alagamentos, congestionamentos, acidentes, resgates. Apesar do caos e parecer a alvorada de 2012, fim dos tempos, mas no fundo não é nada mais do que já não tenhamos nos acostumado a achar normal nesta cidade. São Paulo transmuta-se do encanto ao horror em questão de segundos - ou milímetros de chuva.

Pergunte-se agora o que acontece às pessoas que, ao contrário de nós, não estão presas em congestionamentos, ou em algum outro lugar desejando ir para casa. Pessoas que não tem para onde ir, que moram nas ruas, e, com o caos instalado, dependem das ações públicas que deveriam existir para isso. Pois é, deveriam, do verbo "não tá rolando". Dá pra entender?

Ontem, domingo, por força do acaso, me deparei com uma situação dessas. Tropecei em dois garotos, de aproximadamente 11 e 14 anos, fugidos de casa e vivendo na rua há cerca de 8 dias (e não é a primeira vez), escondendo-se da chuva. Ambos ardiam em febre. Visivelmente cansados, pediram ajuda. "Tia, tô com febre, não quero dormir na rua hoje. Não aguento mais."

Até então, eu, na minha ingenuidade polianística, achava que a parte mais difícil em lidar com meninos em situação de rua tinha passado: os meninos, sempre tão arredios, se aproximaram por vontade própria. Agora era encaminhá-los através da rede de assistência social. Ledo engano.

Tentei os telefones de plantão do Conselho Tutelar da minha região: caixa postal. Tentei os da regional mais próxima.
- Não é a minha região, não posso fazer nada. É menino de rua? Chama a polícia que eles levam.
- Não meu senhor, não se trata de caso de polícia... são duas crianças febris, que precisam de...

Tu-tu-tu-tu... Bateu o telefone na minha cara.

Samu? Bom, a cidade está um caos, mas não custa tentar.
- Os meninos estão desacordados? Respiram normalmente? Há sangramento, cortes, sinal de fratura? Senhora, não há previsão de atendimento, isso não é uma emergência, não posso dizer quando o chamado será atendido. Aconselho que chame a polícia, já que são meninos de rua.

Chame a polícia. Alguém está vendo algum caso de polícia aqui?

Toca a procurar os telefones de atendimento da prefeitura de São Paulo. Na página da Secretaria de Assistência Social, nenhum dos números informados atende; tento o 156, sou transferida para a CAPE, o telefone chama até cair. Não existe plantão de atendimento social nesta cidade??? Começo a buscar pela CAPE no google, combinando várias palavras, até chegar à página Guia de Direitos (ótima, por sinal), que trazia mais informações do que o site oficial da prefeitura, e o número correto do telefone da CAPE.

Sou atendida na primeira chamada. Mas, para conseguir o atendimento para os meninos, preciso informar uma série de dados, como nome completo, idade, data de nascimento, nome da mãe... Ei??? Como assim??? Sem os dados não é possível abrir um chamado. Ok, ok. Vou conversar com os meninos, ver o que consigo descobrir deles, e volto a chamar a CAPE. Enquanto isso, fico pensando qual será o significado de direito universal - se é universal, não deveria perguntar sequer o nome de quem o reclama...

Com os dados informados, recebo outra notícia: os meninos devem aguardar na rua, próximos ao endereço que informei, para serem recolhidos.
- Sim, eles estão aqui comigo, neste endereço, um local público, aguardando.
- Não, senhora, eles deve estar na rua, no passeio público, senão não podem ser recolhidos. O serviço é para quem está na rua.
Ããhhhh??? Será possível que tem de ser tão literal assim? Chove, e muito, e são duas crianças com febre, doentes. Mas elas têm de estar na rua, literalmente.

Vou eu para a calçada, e aguardo por 40 minutos. Nem sinal do carro que deveria vir. Ligo novamente e sou informada: não há vagas em abrigos para menores, não será possível buscá-los. Claro que não há vagas, a prefeitura de São Paulo vem fechando sistematicamente albergues e abrigos na cidade. Mas, o que se faz nesta situação?
- Não podemos fazer nada, senhora. Continuaremos buscando, mas já aviso que as chances são mínimas. Tente a polícia, talvez eles possam passar a noite em uma delegacia.
Ah, eu juro que eu não ouvi isso...

Penso nos 20 anos do ECA, dos primeiros artigos que garantem a proteção das crianças pelo Estado e pela sociedade, e me dou conta que realmente eu não me livrei da minha Síndrome de Poliana. Minha ingenuidade beira a burrice. Alguém tem o celular do Kassab?

Consigo contato no celular de plantão do Conselho Tutelar da região. A conselheira dispõe-se a buscar os meninos, e, depois de mais de uma hora, chega com outra conselheira, para levá-los a uma casa de passagem. No dia seguinte, segundo me informaram, uma assistente social entraria em contato com a família, e faria os encaminhamentos necessários.

Tudo isso começou por volta das 17h30, e estendeu-se até depois das 21h. Mobilizei várias outras pessoas durante este tempo, que se revezaram ao telefone, buscaram soluções, informações - que não estão onde deveriam, enfim, que cumpriram o seu papel. Os meninos estavam tão cansados e febris, que não se opuseram a nada, apesar de desconfiados e reticentes. A única coisa que me falavam, o tempo todo era "tia, você não vai chamar a polícia, vai? A gente não fez nada, por favor!". E a resposta comum vinda de todos os lados, de uma suposta rede de atendimento era "chame a polícia".

Atendimento a menor em situação de risco é caso de polícia?