quinta-feira, 26 de abril de 2012

a vida à espreita da vida

E o silêncio e a recolha se fazem necessários, mas vão assumindo outros significados.

Como se uma gestação se encaminhasse, como se o tempo estivesse prenhe - de forma ainda indefinida. A terra não sabe como se deu a fecundação.

Há desejos que tentam ser assumidos, há ideias, há movimento. Forças antagônicas e ao mesmo tempo concêntricas.

Um útero que se resguarda, que aguarda. Alma de bituca, de tocaia. À espreita.

Quarentena.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

arqueologia de mim mesma (II)

Do grego arkhaiología - história relativa à antiguidade.

Tratando-se da história relativa à antiguidade, posso portanto, tratar da antiguidade relativa ao sujeito histórico. No caso, eu, e a antiguidade que cabe em mim.

Neste exercício de arqueóloga, nesta brincadeira de descobrir vestígios, tenho encontrado espelhos, e tento reconhecer-me neles. Mas só encontro espelhos quebrados, pedacinhos, e sou obrigada a me ver fragmentada. Nem sempre a parte representa o todo.

Surgem, nos pedacinhos dos espelhos, pedaços de mim, de alguém que eu fui-sou-serei, mas ainda não conheço - ou esqueço.

Quebra-cabeça de lógica oculta, ainda não descobri a chave para resolver o desafio.

Vou seguindo, trocando a enxada pelo pincel, a máscara pela lupa.

domingo, 22 de abril de 2012

Meia noite em Paris, ou no Rio de Janeiro

Desde que assisti ao filme Meia Noite em Paris, de Woody Allen, que fico sonhando com esta experiência, em variados lugares no Brasil. Quando fui à Diamantina, no ano passado, ficava andando à noite pelas ruas de pedra daquela cidadezinha mágica, imaginando que ao soar das doze badaladas do sino da igreja, veria passar por mim o Comendador João Fernandes ou a bela Xica da Silva, para reuniões secretas que agitavam as mudanças que aconteciam naqueles cantos de Minas Gerais no século XVIII. Sonhei com isso todas as noites em que estive passeando pelas cidades históricas.

Enquanto assistia ao filme, traçava, em minha cabeça, paralelos com o centro da cidade de São Paulo, imaginava os modernistas na década de 20 se reunindo, bebendo, conversando, tramando o evento do Teatro Municipal. Vislumbrava a beleza abandonada e triste do centro velho da metrópole, tão charmoso, com tanta intimidade resguardada em suas calçadas.

A mesma sensação tive nos últimos dias, enquanto lia o livro de Paulo Lins, "Desde que o samba é samba". A trama se passa nos anos 20, no Estácio, Rio de Janeiro, período logo após a Revolta da Vacina e a campanha de "limpeza" da Cidade Maravilhosa, expulsando para os morros tudo o que poderia "manchar" o cartão postal da cidade. Curiosamente, é no morro que a identidade deste cartão postal brasileiro se constrói, da mistura do Candomblé, da capoeira, da Umbanda que está surgindo como religião que reúne os saberes de todos os povos, da malandragem da zona, da mistura do lundu e do jongo com a polca e o maxixe. Este é o palco do livro de Paulo Lins, que nos conduz, entre ficção e história, pelas composições de Ismael Silva, pelas armações de Francisco Alves na compra das parcerias com os compositores do morro, pelas festas perseguidas pela polícia, e até aos intelectuais paulistas que encontravam na música recém-inventada aquilo que desejavam em seus manifestos.

Fui lendo e repassando em minha cabeça os poucos caminhos que conheço na cidade do Rio, alguns endereços famosos - imortalizados nas letras dos sambas -, algumas histórias que viraram lenda, e imaginando como seria aquele tempo, como tudo aconteceu. Um passeio que na verdade iniciei com outro livro, "Mandingas da mulata velha na cidade nova", do mestre Ney Lopes, que conta do período anterior a este: a chegada dos baianos à capital do país, e a constituição das primeiras comunidades negras, forras, na mistura de filhos de santo e de Maomé, com segredos de cozinha e de santo, embalados com muita música e magia.

Os dois livros são como mitos contados por griôs contemporâneos, mitos de um tempo e um lugar que parecem não ter passado: estão lá, fechados em uma caixinha, à espera daqueles que têm a chave para entrar neste mundo.

Da próxima vez que eu for ao Rio, vou ficar esperando o carro passar depois das badaladas da meia noite... quem sabe tenho sorte.

***

Em tempo: a coleção Ponta de Lança, da editora Língua Geral, é simplesmente deliciosa! O livro do Ney Lopes é apenas um dentre uma seleção de autores lusófonos contemporâneos, com edições muito belas, e textos saborosíssimos. Confesso que comprei o primeiro pela edição, mas já perdi a conta de quantos títulos li!

terça-feira, 17 de abril de 2012

Samba da Vela

Quem nasceu e viveu em cidade grande talvez não entenda o que eu quero dizer. Quem nunca se sentiu pertencente a um grupo, um lugar, uma causa, também não.

Eu, que tenho me tornado um ser meio sem parada nos últimos tempos, tenho tido cada vez mais dificuldade em me sentir "em casa" nos lugares que frequento.

Sentir-se em casa implica várias coisas. É a familiaridade com o lugar, com as pessoas, com o assunto. É ser acolhido, perceber-se bem vindo, mesmo que ninguém o diga. É fazer parte, de alguma forma, ainda que não se faça nada - basta estar.

Ter esta experiência nesta cidade enorme que é São Paulo é raro - e privilegiado. Não sei se é assim para quem vive em bairros mais populares, onde as pessoas se conhecem e formam uma comunidade, mas para quem é forasteiro e vive nas regiões mais adensadas e impessoais - como eu - isso é muito, mas muito difícil. Tenho a impressão, às vezes, que se eu desaparecer, ninguém vai dar pela minha falta.

Toda esta volta, esta introdução, é para falar da simpatia e carinho que tenho pela Comunidade do Samba da Vela. Numa segunda-feira à noite, um espaço público lindo, como a Casa da Cultura de Santo Amaro, é ocupada por gente que quer celebrar a boa música, a beleza da palavra, da melodia, e - o mais belo - o encontro e a alegria da partilha desta beleza. E este ambiente, acolhedor e familiar, aceita com muita espontaneidade e generosidade gente "de fora", como eu.

Falar da alegria da roda de compositores, da magia que existe cada vez que um samba "pega" entre os músicos e o público, é insuficiente. Tem que estar lá para ver. Vozes tímidas que são impulsionadas por outras mais experientes, vozes pra lá de experientes que dão o tom aos mais novos... gente que toma coragem e traz para o centro da roda seus sentimentos, seus pensamentos, e, por que não?, suas piadas e brincadeiras. O arranjo que surge ali, no meio da descoberta, o samba que de repente se torna de todos - e o compositor é tomado pela surpresa de ver seu filho crescer e tomar forma própria.

Para o público, é sempre um privilégio conhecer os compositores, os personagens deste movimento que mantém a chama do samba acesa pelo país, apesar de todas as dificuldades. Para mim, que descobri na roda de samba um alimento para a alma - é quase uma transfusão de sangue! - frequentar uma roda de compositores é oportunidade de fartar-me, provar de iguarias únicas. E além disso, ser recebida por olhares simpáticos, sorrisos, cumprimentos simpáticos. Compartilhar sinais de aprovação, empolgação, aplausos por vezes emocionados. Eu fico olhando ao redor, tentando saber se todas as pessoas se conhecem, e reconheço olhares estrangeiros como eu, igualmente felizes por poder participar daquela celebração.

Vida longa, minha gente, à celebração da vida, do samba, da cultura popular brasileira! Vida longa ao Samba da Vela!


sexta-feira, 6 de abril de 2012

arqueologia de mim mesma (I)


Acho que estou fazendo uma arqueologia de mim mesma. O que procuro? Ainda não sei. Mas estou no processo de busca.
Ainda estou estudando o terreno, examinando o material. Ainda nem cheguei no pincelzinho, nas peças.
Mas vou com cuidado. Sou desastrada demais pra sair com a enxada em punho; vou fazer buracos maiores do que o necessário, acertar peças frágeis.
Dizem que tudo isso é culpa do tal retorno. Culpa de Saturno.
Com ou sem culpados, sigo eu brincando de arqueóloga.
Vamos ver onde isso vai dar.

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Oficina de Brinquedos e Brincadeiras

Sexta-feira. Chegamos à uma nova escola. Por fora, muito parecida com a da semana anterior. Por dentro... quem é que sabe? Pego minha caixa de materiais, minhas varas de pesca e vou descobrir onde fica a sala com a qual vou trabalhar. Pelo caminho, olhinhos curiosos querem saber quem são essas pessoas que chegam com tantas coisas, com tanto barulho, e se dirigem apressadas e aos risos pelos corredores da escola. Tudo o que esses olhinhos sabem é que hoje vai ser um dia diferente.
Isto também sei eu. A cada semana, um novo planejamento se impõe: crianças em maior ou menor número, com idades diferenciadas, espaço mais ou menos amplo, realidades sociais distintas. Ao longo das dez semanas, vou me dando conta que o planejado é apenas um ponto de partida, e que é imperativo estar aberta às mudanças possíveis. Algumas vezes o tempo é muito, mas na maior parte delas, passa voando! Também era assim quando eu era menina; o tempo de brincar sempre acabava logo... E brincar nunca tem regra: sempre surge uma nova brincadeira, uma nova possibilidade, uma outra vontade... É difícil ser o adulto e ter de se lembrar do relógio, dos combinados...

“Com licença, professora, posso entrar?” “Tia, pra que essas varas? A gente vai pescar? Mas aqui na escola não tem rio!” “Ai, sua boba, ela sabe disso, né?” “ A gente vai brincar? Do quê?”.

Ovo choco/ está rachado/ quem rachou/ foi a galinha/ corre cutia/ na casa da tia/ corre cipó/ na casa da vó/ lencinho branco/ caiu no chão/ posso pôr?/ pode, sem demora/ na panela de amora/ um, dois, três/ fecha o olho de uma vez/ que não é a sua vez!/ Inglês!
(lá na rua 23!/ Chinês!/ Japonês!/ Espanhol!)

Arrastar as carteiras, fazer uma roda. Às vezes é bem fácil, noutras um pouco mais difícil; depende da turma, do horário. Crianças calmas, tranqüilas, agitadas, irritadas, felizes, espontâneas, tristes, acuadas. Em dez semanas, um universo inteiro. Em alguns minutos, uma pincelada das cores que pintam aquele espaço diariamente,

Lá em cima do piano/ tem um copo de veneno/ quem bebeu morreu/ o azar foi seu!

“Distribui os copinhos pra mim? Dois para cada um.” “Professora, o que vamos fazer com isso?” “O que vocês acham?” “Carrinho! Telefone sem fio! Óculos! Alto-falante! Tomar café!”
 

Para fazer o ioiô, é preciso a ajuda do companheiro, e é preciso esperar que a fita colorida que se escolheu chegue às suas mãos. Quando digo isso, as professoras me olham incrédulas, achando impossível que as crianças esperem. Com um pouco de paciência - muito mais dos adultos em esperar que as crianças se organizem sozinhas, do que delas próprias -, o trabalho vai caminhando; é muito mais fácil e divertido fazer junto. Nas salas em que há crianças especiais, a ajuda é sempre espontânea, mas sem exageros; eles sabem a medida. Fazemos o ioiô, e a grande farra é aprender a lançá-lo, brincar em frente ao ventilador ligado, descobrir outros movimentos possíveis. Não digo o nome do brinquedo de propósito, e as crianças começam a nomeá-lo: pião voador, ioiô, disco voador, carretel, aviãozinho, helicóptero.

O caminhão de laranjas passou por aqui?/ Passou./ Quantas laranjas você comprou?/ Cinqüenta mil! (risos) Tá bom, vai... Oito!

Alguém entrega duas tampinhas para cada um, um pedaço de barbante; as tampinhas já estão furadas. Peço às crianças que passem o barbante pelos furos da tampinha como suas mães fazem para pregar botão, e eles acham graça. Na hora de dar o nó, descubro que muitas crianças ainda não sabem amarrar. “E quem amarrou seu tênis antes de você vir pra escola?” “Meu tênis não tem cadarço!!! (risos)” 

Antes que todos terminem, algumas crianças já descobriram o brinquedo e estão mostrando às outras como se faz . Conto que o corrupio é um brinquedo muito antigo e que, com certeza, seus pais e seus avós brincavam com ele também. Ouço risadas e carinhas espantadas me indagam: “minha mãe brincava???” 


Percebo que o movimento do corrupio não é tão simples para as crianças menores, e descubro que não sei como lhes mostrar... começo a brincar com um por um, passando para suas mãos enquanto ainda gira, quem sabe assim eles conseguem continuar... com alguns dá certo, com outros não; tenho que ser insistente e cuidar de não passar a minha ansiedade para o menino que apenas espera o momento de aprender. Elas se ajudam e, no fim, todos conseguem. Há as que se encantam com o zunido, outras se deliciam em ver o barbante se comportar como um elástico. Duas meninas tranformam o corrupio em vai-vem. Outras fazem dele colar, e quase todas as crianças fazem o mesmo.

“E as varinhas? A gente não vai brincar com elas? O que a gente vai fazer? Vai levar pra casa? Cadê os peixes? A gente vai pescar?”

Pegamos as folhas de jornal e começo a explicar a seqüência de dobras. A cada nova dobra, um novo brinquedo se configura: um leque, uma manga de paletó, um chapéu de cozinheiro, o chapéu do Papa, um peixe com uma enorme boca. Elas inventam rabos das mais variadas formas, e começam a dar vida a cada peixe. Surgem peixes com cabelos, línguas, olhos, barbatanas... “peixas” com laçarotes, cílios compridos, bochecha pintada...

“Vou fazer uma peixa!” “Mas você é menino, não pode!” “Por que não? Tia, eu posso fazer uma peixa?”

As cores vão aparecendo, tímidas em alguns brinquedos, explosivas em outros. Alguns delicados, com pedacinhos pequenos de crepom que vão compondo mosaicos coloridos no corpo do peixe. Outros, com largas tiras sobrepostas e franjas que voam com o vento. Corações, a letra do nome, a bandeira do Brasil, figuras geométricas, escamas multi-coloridas...

“É um peixe-pipa! É um pipa!!!”

Com a ajuda da professora, vou amarrando os cabrestos e prendendo os peixinhos nas varas de pesca. As outras salas também já estão finalizando,e a quadra da escola vai, aos poucos, sendo povoada de cores e franjas, coloridos peixes voadores que ocupam o céu. Com eles, os desejos e sonhos das crianças voam juntos, empurrados pelo vento típico desta época do ano...

“Tia, você vai voltar? Amanhã você vem? Ah, não vai embora agora não, vamos brincar mais!”

Fim de mais uma oficina. Enquanto guardo meus materiais em minha caixa, vou guardando em mim o olho que brilhou ao ver seu brinquedo pronto, o rostinho sapeca rindo do som do corrupio, cada um dos beijos carinhosos que recebi, e os olhares de cumplicidade no momento da brincadeira, que só quem brinca de verdade compartilha. E essa é a melhor parte.

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Este texto foi publicado em um caderno do Instituto Tomie Ohtake, em 2006. Gosto muito dele. Quando o leio, lembro da minha alegria em brincar com as crianças. Tenho sentido falta disso na minha vida.