quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

A perfeição

O que me tranquiliza é que tudo o que me existe, existe com uma precisão absoluta.

O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete, não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete.

Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível.

O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas.

Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição.

Clarice Lispector, A descoberta do mundo.


Recebi este trecho de um amigo muito, muito querido, num momento de balanços difíceis na vida. E cada vez que o leio, faz um sentido diferente para mim. Obrigada, Chris.


Obrigada, 2011.

Foi, mais uma vez, um ano intenso. Como sempre, aconteceram muitas coisas, boas e ruins, e, graças ao bom Deus, o saldo é positivo.

Um ano para me encontrar com esta cidade, e me reconhecer nela. "Na dura poesia concreta de suas esquinas", no silêncio das maldades diárias, na beleza da gente que lota as ruas ricas e pobres, na fartura de cultura, na escassez de moradias. Reconheço-me, em todas estas variáveis.

Um ano em que muita gente foi embora, às vezes sem tempo de despedida. Tempos de saudades novas e saudade antiga, que doeu de um jeito que há muito não doía. De despedidas que se prolongaram ao longo dos meses, de forma dolorida, mas também tranquila.

Ano de conhecimentos e reencontros também. Com extrema alegria, abençoados por dona Iemanjá no dia 2 de fevereiro. Com tristeza sem tamanho, onde nem o perfume das flores poderiam aliviar o pesar. No acaso, no metrô ou numa esquina, ou ainda num comentário das redes sociais.

Ano de planos desfeitos, adiados para o outro ano que se inicia. De caminhos refeitos, para voltar ao ponto de partida, antigamente equivocado. De conquistas, algumas partilhadas, outras de foro tão íntimo, mas tão intensamente festejadas!

Um ano em que vivi o amor, livremente, em nome de mim mesma. Busquei a verdade, a intensidade, o sagrado entre dois corpos, dois espíritos, dois seres. Algumas vezes encontrei, noutras me decepcionei. Vivi, com a minha verdade. Encontrei o prazer, o carinho, a cumplicidade. A beleza e a alegria.

Ano de encerrar ciclos, alguns que erravam há tempos aguardando o seu fechamento, outros mais recentes, mas igualmente encerrados. Ano para perdoar, a mim e a quem aguardava pelo meu perdão - que o orgulho não me permitia fazê-lo, em ambos os casos.

Ano de estrada, de viagem, de descobrir e reaver caminhos. Eu segui por alguns deles, e outros vieram até mim, trazendo bagagens que eu já havia carregado - e tinha me esquecido.

Um ano em que algo dentro de mim mudou, e me faz sentir, de alguma maneira, mais velha - ainda que a moça do caixa peça meu documento para autorizar a venda de bebida alcoólica, e um moço gentil tenha me dito que aparento apenas 20 anos (sem os óculos de cdf). Em que percebi meus pais mais velhos, meus compadres mais velhos, e as crianças crescidas demais. Ano do retorno de Saturno.

Um ano em que o imponderável se fez presente, e eu tive de aprender a lidar com ele. Em que o ritmo alucinante da cidade quase me engoliu, mas eu resisti - eu acho.

Obrigada, 2011.



quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Pra uma amiga muito, muito querida

Querida, querida, querida,

eu queria poder, de alguma maneira, fazer sua a minha dor. Mas sei que isso não é possível. Cada um de nós sabe o tamanho e o espaço que ela ocupa dentro da gente.

Mas posso ser solidária, e dizer que estou aqui, sempre, em tempo integral. Sempre estive, apesar da distância, dos silêncios, dos desencontros da vida.

Posso lhe dizer que essas dores imensas não se curam, não passam, como costumam nos dizer para nos acalmar. Mas posso lhe assegurar que ficam mais tênues. Transformam-se em saudade. Uma saudade que às vezes aperta o coração, mas que é suportável. Vai ficando suportável, com o passar do tempo.

Sei que você deve estar achando o mundo sem horizontes, a vida sem gosto, o coração sem desejos. Só o tempo, querida, só o tempo muda isso.

Mas tenho que lhe dizer que um dia, tudo isso passa. Quando a gente menos espera, o sol volta a brilhar, o coração volta a seus quereres, o mundo fica saboroso. Primeiro aos pouquinhos, depois intensamente. Haverá dias em que a gente pensa voltar lá pro começo da história, mas retorna pro presente, depois de alguns dias.

Permita-se. Ficar triste, ter raiva, desafiar o mundo, brigar com Deus. Até Ele entende, e perdoa. Trancar-se em casa, não atender ao telefone, não falar com ninguém. Tá tudo certo. Felicidade fingida, pra agradar aos outros, não existe. Quando cicatrizar, as coisas vão voltando para o lugar, aos poucos.

Eu fiquei anos sem rezar. Até que um dia, tive vontade. Simples assim.

Minha linda, minha querida: sonhei que brigávamos, por alguma bobagem, como sempre, por teimosia de ambas, só pra variar. Mas, nesta briga, éramos as mesmas meninas de dez anos atrás, que se entendiam apenas com uma troca de olhares, e confidenciavam as tristezas e alegrias sem sequer uma palavra. Que compartilharam medos e descobertas, numa época encantada. Sei que a dor que você sente hoje tem raízes nesta época, e por isso me sinto no direito de compartilhá-la contigo.

Um novo ano se inicia, minha querida. Que ele venha, com tudo o que merecemos.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Eu te desejo.
Louca e intensamente.
Sonho, dormindo e acordada, com este êxtase.
Seus olhos dentro de mim.
Sua boca encontrando a minha, o leve estremecer do encontro.
As respirações, que se harmonizam, se equalizam.
O mergulho.
Suas mãos, percorrendo meu corpo.
O desejo, percorrendo meu sangue.
A entrega.
O meu pensamento, que se descompassa.
O seu pensamento, que nos reencontra.
A minha cabeça, que gira.
O seu corpo, que se torna meu.
Conduz-me, inteiramente, a esta viagem.
Percurso de prazer, loucura, êxtase.
Quando os corpos deixam de ser, de estar ali.
Energia, luz, vibrações.
Cheiro, gosto, tato.
Explosão contida.
Prazer.



segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Leituras equivocadas

Desencontros.
Desentendimentos.
Sinais errados.
Leituras equivocadas.

Por que demonstrar carinho te ofende?
Por que só aceitar quando vem vazio?
Por que tanto medo?

Das suas inseguranças, você faz matéria para ofensas.
Dos seus fantasmas, você produz assombrações.

A cada movimento de aproximação,
dois de repulsa.

Agressão não é afeto.
Grosseria não é carinho.

Que segurança é esta que buscas no escuro?
Por que insistir em manter as carapaças?

Eu admiro a sua beleza.
Eu admiro a sua inteligência.
Eu admiro o seu humor refinado.

E apenas lamento que, ao tentar lhe demonstrar carinho, você tenha feito tantas outras leituras. Lamento que para você seja tão difícil aceitar que alguém possa gostar de você, sem nenhuma outra intenção. Apenas gostar.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

***

Você faz tudo do seu jeito.
Seu tempo, sua vontade, seus desejos.
Eu espero, aguardo, tenho paciência.
Você vai, volta, congela o tempo.
Eu, pacientemente, justifico cada ato.
Você me coloca na vitrine, bem no fundinho, pra ficar lá e ninguém me perceber, feito estoque, à espera.
Eu... canso da brincadeira, que ficou chata.
Vou embora.

Você resolve voltar, assim, de repente.
Eu deveria estar lhe esperando.
Deveria?
Você tem desejos.
Eu deveria tê-los também, na mesma direção.
Ãhn?
Você procura por mim, na prateleira...
Ha!

Eu sou intransigente.
Eu sou difícil.
Eu não tenho bom senso.

Eu sou rancorosa.
Eu não sei perdoar.
Eu não quero te dar outra chance.

E você...
Você não tem nada a ver com isso.
Como sempre.

Foi só um pisão no pé.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

passagens a limpo

O fim já se anunciava, ambos sabíamos disso, e evitávamos falar disso. De minha parte, o medo da constatação me paralisava, e eu assumi, durante um tempo, o peso da tristeza, do desencontro, do silêncio, até da humilhação - que eu só fui reconhecer depois.

É impressionante como, em nome da manutenção de um suposto amor, a gente vai ao limite da nossa dignidade. Ligações perdidas, mensagens sem resposta, esperas infindáveis.

Naquele dia, eu chorei, me questionei, me culpei, lhe perdoei. Retomando a tradição das mulheres que desesperadamente se auto-obrigam a manter um casamento, mesmo em pleno século XXI, lá fui eu pra cozinha. Um belo e trabalhoso jantar, com sobremesa, um bom vinho, e velas à mesa. Mesa posta, banho tomado, casa perfumada. Se alguém me contasse alguns anos antes que eu, aos 24 anos, faria isso, eu responderia... com uma bela gargalhada!

Mas... o relógio avançou as horas, muitas horas... eu, cansada de lhe esperar, fui dormir, chorando, e acordei quando você chegou. Ainda ouço seu susto, ao abrir a porta da cozinha, e deparar-se com a cena. Eu acredito que ainda havia algum carinho por mim, quando você vacilou entre ignorar o preparo e dormir na sala, ou me acordar para jantarmos juntos. Acordou-me, delicado, num sussurro de desculpas. Conduziu-me à mesa, aqueceu a comida, acendeu as velas, serviu o vinho. Tentou ser afável, elogiou qualquer coisa, fez comentários vazios sobre o dia. Não me recordo do sabor da comida, nem sei dizer se eu realmente comi alguma coisa, se bebi. Havia ali um autômato, que entendera - ainda que sem muita clareza - que fazia papel de tola, que nada daquilo devia estar acontecendo. Éramos dois estranhos compartilhando uma refeição sem sentido.

Na manhã seguinte, uma carta sua, de próprio punho, tentava esquivar-se dos (não)acontecimentos das últimas semanas. A culpa por toda aquela situação, se é que ela existia, seria do tempo, da rotina, do inevitável. Sua covardia não lhe permitia dizer com todas as letras o que realmente acontecia, e relegava a mim encontrar explicações - eu talvez fosse capaz de explicar. Eu, ingenuamente, ainda as procurei, e carreguei-as comigo, durante alguns dias. Será que todas as mulheres do mundo caem nesta armadilha, ao menos uma vez na vida? Lamentável.

Este foi o início do fim de uma história que talvez nem devesse ter acontecido, e o começo de um tempo que só fora adiado, e que eu vivo hoje intensamente.

Curioso como acordei com esta cena clara, vívida na minha memória, justo hoje, 7 de setembro. Uma data quase vazia de significados, e que a gente insiste em ressimbolizar. Talvez porque, naqueles já distantes dias de outubro de 2007, eu também construía, aos trancos e barrancos, a minha independência.

domingo, 31 de julho de 2011

melancolia

Eu estou melancólica.

Irritada, mal humorada, esquisita. Estranha. Sem vontade de me encontrar com o mundo.

Tem uma tristeza, uma saudade, e um vaziozinho que me incomodam. Desejo de concha, de cantinho, de silêncio.

Melancolia.

saudosa saudade

Há períodos em que eu me estranho, me desconheço completamente. Fico assim por dias, semanas... é como se eu não fosse eu, se eu não estivesse aqui. Vontade de ficar quieta, em casa, sem ouvir música ou voz alguma, quieta. Quieta. As vozes dentro de mim não se calam quando eu peço.

Venho me sentindo assim há várias semanas, e os últimos dias foram mais difíceis. É que, somado à estranheza sazonal, uma mistura de outros sentimentos, intensos, se apoderaram de mim.

Minha avó dizia que "para morrer basta estar vivo". Esta verdade, talvez a maior da existência, a gente ainda não aprendeu a administrar numa boa. Cada vez que alguém se despede desta vida aqui, desta existência, algo em nós se desarranja, se desestrutura. Mesmo sabendo que é tão inevitável quanto tomar água, comer...

Estou saudosa de mim, no meu estado solar. Não gosto da melancolia, não sei conviver com ela.

Estou saudosa do meu avô, das suas traquitanas, das quinquilharias. Das longas conversas sobre suas ferramentas, da razão de ser de cada uma delas. Da chavezinha que ficava escondida, para ninguém bulir em suas coisas sem a sua permissão.

Estou saudosa dos meus 18 anos, e de uma festa, ingênua como aquele tempo, com bexigas coloridas e kits maioridade, promovida pelas pessoas que viveram intensamente esta época comigo. Saudosa do que fomos, daquilo que sonhamos, que vivemos, e que já não temos mais. Dos sentimentos que trazem lembranças doces, quentinhas.

Saudades que sentimos, que ficam em algum lugar dentro da gente, às vezes mais vivas, às vezes esmaecidas.

Escrito em uma noite de julho de 2011, em meio à insônia, e às tristezas decorrentes da falta de tempo para nos despedirmos de quem vai embora sem avisar...

sexta-feira, 27 de maio de 2011

ninguém vê

A falta de olhos, o quanto não se vê, o que se escolhe enxergar nesta cidade é coisa para mim impressionante. Juro que não consigo - e espero nunca conseguir - acostumar-me.

Segunda-feira, 23 de maio de 2011, 14h30 da tarde. Estou andando pela Rua das Palmeiras, em direção ao corredor de ônibus, quando uma movimentação de carros de polícia, e policiais, me chamam a atenção. Sou ressabiada, e quando vejo este tipo de movimentação, fico preocupada. O que fazem tantos policiais na rua a esta hora, em plena luz do dia? Sigo caminhando, olhando para todos os lados, procurando olhares cúmplices no meu receio, mas não encontro. As pessoas seguem caminhando normalmente, absortas em seus caminhos, sem notar o que acontece.

Chego à Avenida São João, e consigo visualizar a cena toda: as viaturas policiais fazem escolta para um caminhão pipa que lava a calçada embaixo do Elevado Costa e Silva. Limpeza urbana no meio da tarde de segunda-feira? Escolta policial? Pra quê?

Um pouco à frente, a ingênua aqui entende o todo: fortes jatos de água "limpam" a cidade de sua sujeira. De seus lixos. De seus dejetos. Daquilo que deve ser varrido para baixo do tapete, longe dos olhos. Um caminhão vai à frente, recolhendo os poucos pertences daqueles que vivem embaixo do Elevado. Uma kombi, um pouco mais adiante, dá suporte a um time de funcionários da limpeza urbana, que abordam os moradores de rua: um grupo com cerca de 8 homens cerca uma pessoa, que dormia, e, atônita, tenta entender o que se passa.

A eficácia da limpeza é tamanha que não se aplica ao trecho da calçada onde se localizam os pontos de ônibus. A "tropa da limpeza" pula o ponto de ônibus, e avança para o próximo trecho. O caminhão pipa continua despejando água, mangueira com jato forte, avenida em frente. Água, aliás, que deve estar fazendo falta em algum bairro da periferia, que já vive o racionamento diariamente.

Quando dou por mim, caminhei para além do ponto onde esperaria meu ônibus, acompanhando a cena toda. Os policiais caminham com aquele andar seguro e tranquilo de quem está cumprindo seu dever. As pessoas que atravessam a rua, cruzam a calçada central sem se deter na cena. Eu fico meio perdida, tentando ver para onde vão os moradores, mas estou bem atrás do grupo de funcionários que faz a abordagem.

Entro no ônibus, fico próxima à janela, para continuar vendo. Eu imagino que mais à frente haveria um carro da assistência social, mas me engano. Não vejo nenhum. A tropa da limpeza emperra o trânsito, e os ônibus são obrigados a sair do corredor para desviar dela. O motorista resmunga qualquer coisa, o cobrador faz uma piada infeliz sobre o destino daqueles que estão sendo desalojados. Um homem diz que aquilo é uma vergonha para São Paulo - eu me pergunto qual seria a vergonha: a existência daquelas pessoas, sua situação, ou a cena que estamos presenciando, mas não tenho ânimo para formular a questão em voz alta. Olho para as pessoas que estão sentadas próximas às janelas, e não vejo ninguém interessado no que acontece lá fora: duas moças conversam animadamente, um rapaz regula seu mp3, a maioria olha para a frente.

Chego em casa e procuro na internet alguma notícia ou menção à ação que assisti. Encontro apenas uma nota de um coletivo de artistas, que realizou uma intervenção no mês passado para impedir a mesma ação. Apenas esta nota. Nada nos jornais, blogs, ou no site da prefeitura, sptrans ou coisa que o valha.

Ontem, conversando com um colega, descobri que ele circulava por ali no mesmo horário que eu. Perguntei se viu alguma movimentação estranha, e ele negou. Quando contei o que vi, ele comentou: "é mesmo, os ônibus estavam lentos em um trecho da São João, mas eu nem vi o porquê."

É assim. Isto é o que mais me assusta nesta cidade imensa e complicada. Ninguém vê. Nada nem ninguém. Nunca.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Abdias do Nascimento: Brasil perde pioneiro na militância contra o racismo

fonte: Fundação Cultural Palmares

http://www.palmares.gov.br/?p=12027

terça-feira, by Daiane Souza
Foto: Divulgação / Blog Do Olhar NegroFoto: Divulgação / Blog Do Olhar Negro
Abdias do Nascimento
Por Daiane Souza*

O Brasil perdeu nesta terça-feira, 24 de maio, um de seus maiores líderes: Abdias do Nascimento, um dos pioneiros na luta contra a discriminação racial. Aos 97 anos, o ativista na denúncia do preconceito e na defesa dos direitos dos afrodescendentes pelo mundo não resistiu às complicações cardíacas que o levaram a uma internação no último mês, no Rio de Janeiro.
O presidente da Fundação Cultural Palmares, Eloi Ferreira de Araujo, expressa gratidão e seu profundo pesar: “estamos enlutados pelo falecimento de Abdias, mas haveremos de continuar sua luta para que o Brasil acabe definitivamente com o racismo, o preconceito e a discriminação racial, e que todos os descendentes de africanos que vivem no Brasil tenham igualdade de oportunidades para que possam acessar os bens econômicos e sociais”.

Abdias, deixa uma legião de seguidores inspirados em sua trajetória de coragem e dedicação aos direitos humanos.

POETA DA IGUALDADE – Nascido em 1914 no município de Franca, Estado de São Paulo, Abdias foi filho de Dona Josina, a doceira da cidade, e Seu Bem-Bem, músico e sapateiro. Embora de família pobre, conseguiu se diplomar em contabilidade em 1929. Aos 15 anos alistou-se no exército e foi morar na capital paulista, onde anos depois se engajou na Frente Negra Brasileira e se envolveu na luta contra a segregação racial.

Dramaturgo, poeta e pintor, atuou também como deputado federal, senador e secretário de Estado, cargo no qual desenvolveu aspectos dessa luta. Autor das obras Sortilégio, Dramas para Negros e Prólogo para Brancos e O Negro Revoltado, relatou nos livros as realidades quilombolas e levantou temas como o pensamento dos povos africanos, combate ao racismo, democracia racial e o valor dos orixás nas religiões de matriz africana.

MILITÂNCIA – Com uma trajetória marcada pelo ativismo, Abdias conseguiu importantes resultados de suas iniciativas na defesa e na inclusão dos direitos dos afrodescendentes brasileiros, principalmente, por meio de políticas públicas. Por exemplo, em 1988, Abdias tornou-se um dos responsáveis pela instituição da Comissão do Centenário da Abolição e por seu desdobramento na Fundação Cultural Palmares.
No mesmo ano, a Constituição do país passou a contemplar a natureza pluricultural e multiétnica, a prática do racismo tornou-se crime inafiançável e, também pela primeira vez, se falou no processo de demarcação das terras de quilombos.

OUTROS FEITOS – A luta do militante não se resumiu aos feitos já citados. Em 1944 fundou o Teatro Experimental do Negro (TEN), entidade que patrocinou a Convenção Nacional do Negro nos anos 1945 e 1946. Na Convenção foi proposta à Assembléia Nacional Constituinte a inclusão de políticas públicas para a população afrodescendente e um dispositivo constitucional definindo a discriminação racial como crime de lesa-pátria.

Como primeiro deputado federal afro-brasileiro (1983-1987) e como senador da República (1991, 1996-1999) dedicou seus mandatos à luta contra o preconceito. Foi responsável por projetos de lei que definiam o racismo como crime e pela criação de mecanismos de ação compensatória para construir a verdadeira igualdade para os negros na sociedade brasileira.

Foi ainda nomeado primeiro titular da Secretaria Estadual de Cidadania e Direitos Humanos (1999-2000) e, em 2001, ganhou o prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) de Direitos Humanos e Cultura de Paz por seu ativismo.

TRIBUTO – Militantes do Movimento Negro e admiradores manifestaram seu pesar e prestaram homenagens pela morte da liderança:
A luta de Abdias Nascimento foi de uma entrega tal que não se intimidou nem mesmo no início, com um Brasil saído da escravidão havia poucas décadas. Desde então, Abdias virou uma espécie de sinônimo de defesa da igualdade para os afrodescendentes. Nas suas mãos, esta bandeira ganhou o caráter de luta do interesse de toda a Humanidade. Sem esquecer, ainda, que, por mais política que fosse, ele não deixou jamais de ancorá-la profundamente na cultura. Aos familiares, amigos e admiradores, meu abraço solidário”, Ana de Hollanda, Ministra de Estado da Cultura.
“Ele é nosso Zumbi, nosso líder. Foi uma honra ter vivido esse tempo de heróis e ter convivido com esse bravo ser humano. O Brasil e em especial nós – afro-brasileiros –perdemos um dos mais importantes nomes da nossa história”, Benedita da Silva (PT-RJ)
“Um grande brasileiro que teve ao longo de sua vida dedicação e compromisso com a luta em defesa do povo negro, e com a história social e política dos negros. Que não calou no período da ditadura militar.” Senador João Pedro (PT-AM)
“Um gigante na luta contra o racismo” Senadora Marta Suplicy (PT-SP)
“Abdias é um ícone de luta e deixou uma herança de conquistas para nós, povo negro! À sua memória, honramos o caminho de guerra e conquistas que nos deixou com seu ensinamento de combatividade e resistência, para nós que militamos por um país mais justo e igual”, Luiz Alberto, deputado federal (PT/BA)
“Morreu Abdias do Nascimento, um homem que foi tantas coisas que é difícil enumerar e, em todas elas, foi um só: um brasileiro negro, que amou a arte, o conhecimento e as pessoas”, Brizola Neto, deputado federal (PDT/RJ)
“Muito triste com o falecimento do saudoso Abdias do Nascimento! Sua luta a favor da equidade de direitos entre raças é algo histórico! Nós, afrodescendentes, perdemos um grande líder, uma grande referência. O Brasil perde um ser humano fantástico! Descanse em paz, mestre!”, Netinho de Paula, vereador.
“Adeus Abdias Nascimento, Valeu por tudo!”, Jorge Washington, ator do Bando de Teatro Olodum
“O companheiro Abdias da Silva estará sempre presente entre nós, que seguindo seu exemplo de vida, continuaremos a lutar por um mundo sem racismo e contra todas as formas de exclusão, opressão e dominação, como nos ensinou esse mestre”, Flávio Jorge Rodrigues da Silva, Diretor da Fundação Perseu Abramo, militante da SOWETO – Organização Negra, e da direção da Coordenação Nacional de Entidades Negras (CONEN).
*Colaborou: Denise Porfírio e Maíra Valério.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

outono

faz frio
nas últimas noites, nos últimos dias
céu branco, sem cor
neblina, névoa

faz frio
dentro de mim
sensação de vazio, ausência
paladar sem gosto

sentimento de insatisfação
que nada completa
que nada define
fome, insônia, impaciência
desânimo

eu gostava do outono
quando eu não me sentia
fazendo parte dele

sábado, 14 de maio de 2011

saudades

saudades
das risadas que não ouvi
do sorriso que não se abriu
do choro que não acolhi
do colo que não pude oferecer
das pernas compridas, que não me permitiriam te carregar ainda hoje
das histórias que não contei
das cantigas que não cantei
dos bolos que não fizemos juntos
das bagunças, das brincadeiras

saudades destes seis anos
das letras que estaria ensaiando no caderno
das travessuras que já teria aprontado
e das muitas perguntas, que já teriam me deixado sem respostas

saudades de um mundo que seria diferente
da minha casa que seria outra
da minha vida, que estaria em outro lugar

saudades de você, pequenino
que mora em outro lugar
tão longe de mim
e ao mesmo tempo
tão presente aqui dentro

*para um menino que em apenas 8 meses mudou a minha vida para sempre. E lá se vão 6 anos...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Há dias

Há dias em que tudo está maravilhosamente bem, e a gente faz questão de transformar o mundo e deixá-lo colorido como a gente se sente.

Há outros, e esses são a maioria, que as coisas estão normais, e a vida vai seguindo seu curso.

Há dias péssimos, que o melhor é nem olhar pro mundo. Ou o mundo consegue estar em um dia melhor que o nosso, e nos traz um pouquinho de ânimo.

E há os dias em que tudo deveria estar ok, o mundo parece estar no lugar, o sol até está onde deveria, tem até cor no caminho - e nem é preciso fazer esforço algum pra perceber isso, e mesmo assim, alguma coisa está fora do lugar.

Dia de lembranças, de aperto no coração, de alguma coisa que não encaixa. Dia de fazer de conta que está tudo bem, até porque não se sabe dizer o que não está bem. E porque, de verdade, não há razão para isso, porque a razãozinha que teima em se levantar lá nas profundezas, já não deveria existir há algum tempo.

Há dias...

terça-feira, 1 de março de 2011

Quem cuida de quem?

Imagine-se na seguinte situação: um dia de chuva pesada em São Paulo, vários e simultâneos alagamentos, congestionamentos, acidentes, resgates. Apesar do caos e parecer a alvorada de 2012, fim dos tempos, mas no fundo não é nada mais do que já não tenhamos nos acostumado a achar normal nesta cidade. São Paulo transmuta-se do encanto ao horror em questão de segundos - ou milímetros de chuva.

Pergunte-se agora o que acontece às pessoas que, ao contrário de nós, não estão presas em congestionamentos, ou em algum outro lugar desejando ir para casa. Pessoas que não tem para onde ir, que moram nas ruas, e, com o caos instalado, dependem das ações públicas que deveriam existir para isso. Pois é, deveriam, do verbo "não tá rolando". Dá pra entender?

Ontem, domingo, por força do acaso, me deparei com uma situação dessas. Tropecei em dois garotos, de aproximadamente 11 e 14 anos, fugidos de casa e vivendo na rua há cerca de 8 dias (e não é a primeira vez), escondendo-se da chuva. Ambos ardiam em febre. Visivelmente cansados, pediram ajuda. "Tia, tô com febre, não quero dormir na rua hoje. Não aguento mais."

Até então, eu, na minha ingenuidade polianística, achava que a parte mais difícil em lidar com meninos em situação de rua tinha passado: os meninos, sempre tão arredios, se aproximaram por vontade própria. Agora era encaminhá-los através da rede de assistência social. Ledo engano.

Tentei os telefones de plantão do Conselho Tutelar da minha região: caixa postal. Tentei os da regional mais próxima.
- Não é a minha região, não posso fazer nada. É menino de rua? Chama a polícia que eles levam.
- Não meu senhor, não se trata de caso de polícia... são duas crianças febris, que precisam de...

Tu-tu-tu-tu... Bateu o telefone na minha cara.

Samu? Bom, a cidade está um caos, mas não custa tentar.
- Os meninos estão desacordados? Respiram normalmente? Há sangramento, cortes, sinal de fratura? Senhora, não há previsão de atendimento, isso não é uma emergência, não posso dizer quando o chamado será atendido. Aconselho que chame a polícia, já que são meninos de rua.

Chame a polícia. Alguém está vendo algum caso de polícia aqui?

Toca a procurar os telefones de atendimento da prefeitura de São Paulo. Na página da Secretaria de Assistência Social, nenhum dos números informados atende; tento o 156, sou transferida para a CAPE, o telefone chama até cair. Não existe plantão de atendimento social nesta cidade??? Começo a buscar pela CAPE no google, combinando várias palavras, até chegar à página Guia de Direitos (ótima, por sinal), que trazia mais informações do que o site oficial da prefeitura, e o número correto do telefone da CAPE.

Sou atendida na primeira chamada. Mas, para conseguir o atendimento para os meninos, preciso informar uma série de dados, como nome completo, idade, data de nascimento, nome da mãe... Ei??? Como assim??? Sem os dados não é possível abrir um chamado. Ok, ok. Vou conversar com os meninos, ver o que consigo descobrir deles, e volto a chamar a CAPE. Enquanto isso, fico pensando qual será o significado de direito universal - se é universal, não deveria perguntar sequer o nome de quem o reclama...

Com os dados informados, recebo outra notícia: os meninos devem aguardar na rua, próximos ao endereço que informei, para serem recolhidos.
- Sim, eles estão aqui comigo, neste endereço, um local público, aguardando.
- Não, senhora, eles deve estar na rua, no passeio público, senão não podem ser recolhidos. O serviço é para quem está na rua.
Ããhhhh??? Será possível que tem de ser tão literal assim? Chove, e muito, e são duas crianças com febre, doentes. Mas elas têm de estar na rua, literalmente.

Vou eu para a calçada, e aguardo por 40 minutos. Nem sinal do carro que deveria vir. Ligo novamente e sou informada: não há vagas em abrigos para menores, não será possível buscá-los. Claro que não há vagas, a prefeitura de São Paulo vem fechando sistematicamente albergues e abrigos na cidade. Mas, o que se faz nesta situação?
- Não podemos fazer nada, senhora. Continuaremos buscando, mas já aviso que as chances são mínimas. Tente a polícia, talvez eles possam passar a noite em uma delegacia.
Ah, eu juro que eu não ouvi isso...

Penso nos 20 anos do ECA, dos primeiros artigos que garantem a proteção das crianças pelo Estado e pela sociedade, e me dou conta que realmente eu não me livrei da minha Síndrome de Poliana. Minha ingenuidade beira a burrice. Alguém tem o celular do Kassab?

Consigo contato no celular de plantão do Conselho Tutelar da região. A conselheira dispõe-se a buscar os meninos, e, depois de mais de uma hora, chega com outra conselheira, para levá-los a uma casa de passagem. No dia seguinte, segundo me informaram, uma assistente social entraria em contato com a família, e faria os encaminhamentos necessários.

Tudo isso começou por volta das 17h30, e estendeu-se até depois das 21h. Mobilizei várias outras pessoas durante este tempo, que se revezaram ao telefone, buscaram soluções, informações - que não estão onde deveriam, enfim, que cumpriram o seu papel. Os meninos estavam tão cansados e febris, que não se opuseram a nada, apesar de desconfiados e reticentes. A única coisa que me falavam, o tempo todo era "tia, você não vai chamar a polícia, vai? A gente não fez nada, por favor!". E a resposta comum vinda de todos os lados, de uma suposta rede de atendimento era "chame a polícia".

Atendimento a menor em situação de risco é caso de polícia?

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Entre linhas e agulhas, uma mãe e uma filha

Passei um final de semana costurando com a minha mãe.

Passamos três dias às voltas com tecidos, moldes, linhas, aviamentos. Escolhendo modelos, conferindo medidas, adequando a fazenda ao corte escolhido. Eu escolhia, ela ponderava, eu tirava o molde, ela aprovava.

Cortar o tecido é com ela, que faz isso com uma facilidade invejável. Diz que aprendeu a costurar sozinha - eu acho que ela apenas descobriu como costurar, porque no fundo já o sabia. Conferir todas as indicações e receitas é comigo, que, segundo ela, entendo mais rápido, antes de terminar de ler.

Eu cresci vendo minha mãe entre os tecidos e as linhas, a máquina de costura e os moldes, o giz de alfaiate e a fita métrica. Sempre achei este mundo fascinante. Construía minhas casinhas embaixo da máquina de costura, uma Singer pretinha, de pedal, e colocava minhas bonecas para balançar na correia da máquina, com todo cuidado para não desenroscá-la da roda. Dos retalhos, minha mãe fazia roupas de boneca maravilhosas, vestidos de gala, fantasias de carnaval, adereços para a casa - eu tinha as bonecas mais bem vestidas do mundo. E ansiava por conseguir, com as minhas próprias mãos, alinhavar alguns pontinhos tortos e dar forma a uma minissaia ou um gorro para uma das minhas filhas.

Minha mãe me diz que cresceu costurando para nós (eu e meus irmãos), e, mais especificamente, para mim, sua primeira boneca de verdade. Foi do desejo de vestir a bonequinha preta que as mãos foram ficando mais ágeis, os pontos mais precisos, a tesoura mais certeira. Dos retalhos que fizeram roupinhas para ficar em casa, ao vestido de gala da formatura, foram anos de aprendizado e apuro.

Neste final de semana, que ficamos as duas às voltas com este fazer tão familiar e corriqueiro dentro da nossa casa (nossa é modo de dizer; eu já sou visita há tantos anos...), percebi o quê costuramos ao longo destes anos todos. Na relação que construímos, de cumplicidade e respeito, nos descobrimos duas mulheres muito diferentes, em muitos aspectos. São sonhos, desejos, impulsos, escolhas, leituras, que nos posicionam muitas vezes de lados opostos, ainda que em uma mesma estrada. Mas, apesar disso, é como se a linha da bobina, da costura que corre pelo lado de baixo, não fosse nunca cortada: ela segue para lá e para cá, ajuntando os vários retalhos, por vezes quase incompatíveis. Mas isso só é possível porque são feitos da mesma matéria, do mesmo fio, da mesma partida da fábrica.

Adentramos as noites, com o pretexto de costurar, e pudemos ter tempo para confidências, atualizações, consentimentos e considerações. Entre uma e outra escolha, pudemos reconhecer, uma na outra, aquilo que sempre esteve ali, e que faz esta relação tão especial, ao mesmo tempo sólida e delicada.

Uma colcha de retalhos, um patchwork, com várias técnicas envolvidas, com recheio cuidadosamente trabalhado, quiltado com delicadeza, e com as costuras intermediárias rebatidas e reforçadas. Uma colcha daquelas feitas para durar a vida toda, com alguns remendos, claro, e ser repassada para os filhos, e os filhos dos filhos, e os filhos dos filhos dos filhos...

Acho que entendi porque gosto tanto de linhas, agulhas, tecidos e tramas.



terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Suspensão

Rio Paraguassu
Originally uploaded by canecalon



















Eu fugi.
Uma semana de suspensão no tempo.
Atendi aos chamados, os tambores cá fora, os tambores cá dentro.
Outro ritmo, outro tempo, quase outro mundo...
Parar, ouvir, me ouvir.
Entender o que se passa comigo, escapar do turbilhão daqui.
Tinha chamado sério...
Obedeci.
Agora voltei.
Até Oxalá sabe quando...

domingo, 16 de janeiro de 2011

tá me chamando...

o ano começou
os movimentos já começaram
há chamados que a gente adia
faz de conta que não escuta
ignora

até que não dá mais

tô escutando
dentro de mim

tambor, tambor, tambor, tambor...

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Noite de Natal, quando se tem apenas quatro anos

Na noite de Natal
(por um menino do alto dos seus quatro anos e meio)

- Eu não vou dar presente de aniversário pra esse menino Jesus nada. Não quero.
- Por que T.?
- Ele nunca me convidou pra festa dele! Não dou e pronto!

***