segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Amores possíveis

Eu não sei se acredito em amor eterno, ou alma gêmea. Em pessoas que nasceram uma para a outra, e que o destino as coloca frente a frente, em algum momento da vida.

Talvez isto seja verdade para algumas pessoas. Talvez venha a se tornar verdade para mim, em algum momento.

Eu acredito em amores possíveis. Em encontros especiais, pessoas incríveis, momentos únicos. Marcas, dobras, fissuras, ranhuras: o amor se fixa assim, no corpo, na alma, no coração da gente.

Por vezes, me pego com saudades de um amor vivido. Nem sempre a saudade é da  pessoa. Parece estranho, mas é exatamente isso: a saudade é daquela pessoa, naquele momento, com o que eu era neste conjunto. Não adianta reencontrá-la. Vai ser outra história - que pode ser tão especial quanto, mas será outra.

Chega a ser engraçado, porque alguns destes amores eu reencontrei muito tempo depois - e me pareceram pessoas estranhas. Como pode, tanta intimidade se transformar em indiferença? Mistérios da vida humana.

Outros amores passaram a ser amor brando, quentinho, e ocupam lugar cativo dentro de mim; são mais do que marca. Amores despudorados, sinceros e intensos, que se transformam em carinho. Admiração, amizade, vontade de intimidade.

Ainda tenho em mim amores que são sensações de desejo, que não foram esgotadas. Não é saudade, é outra coisa. É amor com vontade, com respiração, com curiosidade. Não sei qual o nome disso. Sei que estes amores me impulsionam para a vida, para vivê-los, ou me permitir buscar novos encontros.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Férias 2011 - devaneios no caminho (I)

Sempre viajo com uma caderneta. Quando se viaja sozinha, é preciso ter com quem compartilhar pensamentos.

No terminal rodoviário do Tietê, enquanto aguardava o ônibus para o Rio de Janeiro, rabisquei as seguintes linhas:

"23/09/2011
Início da Primavera.
Novas férias, novos destinos, novas viagens.
Cá estou, na rodoviária do Tietê, esperando o ônibus para o Rio de Janeiro. Um bando de adolescentes atrás de mim fala do Rock'n'Rio que eu, espertamente, ignorava até ontem - dããã...
Meia hora atrás eu pensei em embarcar diretamente para BH, e ignorar esta passagem pelo Rio, mas fiz um uni-duni-tê e o Rio ganhou, Na verdade, fiquei tentada em tirar a sorte na bilheteria e embarcar sem rumo, sabe-se lá para onde. Um dia ainda faço isso...
Viajar, para mim, é sempre adentrar em outra vibe. É como se eu me despedisse do mundo, das pessoas que amo, fizesse as últimas coisas importantes, antes de seguir. Há sempre o risco de não voltar. Sigo aberta às possibilidades, aos encontros, às descobertas, ao desejo de mundo. Umas vezes mais, outras menos, mas sempre com este desejo.
Este ano não tenho o cansaço nem a ansiedade das outras vezes. Parto, antes de tudo, para um encontro comigo. Quero saber onde estou EU, que tenho por tantas vezes me desconhecido.
Parar e escutar, é esta a ideia."

terça-feira, 17 de julho de 2012

O camelo e o dromedário

Os dois pequenos queriam ler um livro, daqueles que contam os porquês das coisas. Eu folheava as páginas e perguntava aos meninos o que eles achavam.

- Por que o camelo tem duas corcovas?
- Pra carregar duas pessoas!
- Não, seu bobo. (ele já lera o livro). Ele tem as corcovas pra guardar comida.
- Mas o outro do lado só tem uma.
- É que o dromedário come menos.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

O chão me falta sob os pés.
Náusea, enjôo, asco.
Raiva.
Procuro por piedade e compreensão da falha humana, mas não consigo.
Essa é uma das minhas muitas falhas. Talvez alguém consiga me compreender e me absolva.
Enquanto mantenho a casca por fora, desmorono por dentro.
Ódio.
Porque o mundo é tão errado?
Porque o ser humano se multiplica a partir da fórmula errada?
Esforço-me para pensar em coisas boas, mas não consigo.
Náusea, choro, insônia.
E a constatação de que o mundo conspira a favor do erro.
Gracejo fora de hora.
Náusea, náusea, náusea.
Impotência.
Embaixo do meu nariz.
É preciso ter piedade.
Mas eu não me convenço disso.
A arrogância humana também me toma e me corrói.
Um erro justifica o outro, é sempre assim.
Náusea, enjôo, olhos marejados.
E a esperança de que uma noite de sono ao menos amenize o impacto.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Sinal fechado

Sábado à noite. Como se já fosse uma regra dessas que a gente não consegue quebrar, estávamos - ligeiramente - atrasados. O trânsito desta cidade louca, que não tem mais hora nem dia, quase nos fez perder o compromisso.

Entro no carro, sabendo que o meu medo nos fez atrasar ainda mais: eu poderia ter ido direto de metrô à Estação da Luz, mas não consigo andar sozinha à noite naquele trecho, e fui esperá-lo na República. No sinal vermelho, paramos o carro e daí me dou conta - um pouco tarde - que as duas janelas estão abertas. Eu tenho vergonha do medo que tenho da cidade, mas não consigo evitá-lo.

No rápido tempo do farol fechado, um morador de rua nos aborda. Já que não dá para subir o vidro, acendemos a luz interna. O rapaz faz menção de pedir algo mas, surpreso com a luz acesa, olha para dentro do carro.

- Nossa, vocês formam um casal muito bonito. Verdade mesmo, Deus que proteja!
- Obrigado.
- Vocês não tem algum aí, uma moedinha, qualquer coisa?


Procurou no console, mas não tinha nada. Tentou de novo, e encontrou uma medalhinha de Nossa Senhora, provavelmente comprada em algum outro sinal fechado. Meio sem graça, ofereceu ao moço, do lado de fora.

- Puxa, só tenho esta medalhinha aqui, nenhuma moeda... você... você quer?


O rapaz aceitou a medalhinha num misto de surpresa e gratidão. Olhou-a contra o céu, sorriu, desejou-nos boa noite e disse que aquilo era melhor do que uma moeda. O sinal abriu, seguimos em frente, e já nem nos lembramos de fechar as janelas.

As possibilidades de encontro nesta cidade maluca são tão improváveis e inusitados, que eu fico pensando que sempre, sempre posso me surpreender.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A celebração do samba

Algumas experiências são difíceis de serem relatadas. A gente é tomado por tantos sentimentos, que qualquer tentativa de objetividade empobrece a experiência.

Fui assistir ao lançamento do novo cd do Quinteto em Branco e Preto no último sábado. Assistir não é a palavra correta; fui participar. Sim, participar, porque o samba, quando é bem feito, quando é verdadeiro, ele é um convite à celebração, e esta nunca é passiva.

Chegamos, eu e família, em cima da hora (só pra variar), e tivemos pouco tempo para nos acomodar, já que perdemos os lugares originalmente escolhidos, lá no burburinho. Casa cheia, ingressos esgotados, as comunidades todas presentes - delícia ver o Auditório Ibirapuera ocupado assim. Uma atmosfera de alegria e orgulho pairava no ar: todo mundo veio celebrar junto.

O recado vem logo no início, anunciando que o futuro de glória destes meninos já chegou. As músicas dão seu recado, confirmam sua filiação à tradição, reverenciando nossos ancestrais, nossas raízes. Os convidados chegam para legitimar e abençoar esta festa: o grande Sapopemba, as velhas guardas da Nenê e do Camisa Verde e Branco, seu Carlão do Peruche e Fernando Penteado, a Banda Mantiqueira.

E a festa vai esquentando, e a batucada boa, quente, marca registrada nesta história de quinze anos, vai ganhando corpo. O público, comportado em suas poltronas, finalmente se solta, e vai sambar em frente ao palco, no auge da celebração.

Saí de lá feliz, muito feliz. Pessoalmente, por conhecer de perto o trabalho e a dedicação dos meus amigos, e poder ver a colheita de tudo que foi plantado com tanto amor e carinho. Mas feliz também por reconhecer que o meu povo, a minha gente - preta, branca, da periferia, da cidade grande, do terreiro de chão batido ou do apartamento - tem mais uma razão para se orgulhar, para celebrar, e continuar cantando.

Um sambista de verdade
faz samba e não pensa em conquista
sou nascido num terreiro
em São João da Boa Vista
Na hora em que nasci
Mamãe me jogou na pista
"se cair deitado é padre,
caiu de pé é sambista"
Geraldo Filme

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Mas não tem cortina!

Como sempre havia correria, muitas pessoas envolvidas na produção. Equipamento de som, mobiliário de apoio, assentos para o público. Ajustes nos tempos, a entrada do convidado, o percussionista, a delimitação do espaço. O público, já acomodado no entorno, observava a movimentação e aguardava o início da já anunciada narração de histórias.

Em meio a confusão dos adultos - os adultos são sempre confusos - um pequeno, com quase três anos, não mais do que isso, me indaga:

- Moça, já vai começar?
- Ainda não, querido. Daqui um pouquinho, você espera?
- Por que tem que esperar?
- Porque ainda não está pronto... a gente tá arrumando, tá bom?
- E... como dá pra saber que vai começar?
- Ah, você vai saber...
- Mas não tem cortina!

E a gente insiste em achar que as crianças não sabem das coisas...


quinta-feira, 3 de maio de 2012

vem?

se falta doçura, posso buscar mel.
se falta leveza, ficar nas ponta dos pés.
se falta alegria, quero um saco de risadas.

se faltam sonhos, preciso ir dormir mais cedo.
se faltam ideias, tenho uma pilha de livros para pôr em dia.
se falta empolgação, umas vitaminazinhas de vez em quando vão bem.

tá faltando presença no hoje
tá faltando desfrute
tá faltando biscatear

tô procurando companhia.

vem?


Happy Kids Kites

foto de CubaGallery

quinta-feira, 26 de abril de 2012

a vida à espreita da vida

E o silêncio e a recolha se fazem necessários, mas vão assumindo outros significados.

Como se uma gestação se encaminhasse, como se o tempo estivesse prenhe - de forma ainda indefinida. A terra não sabe como se deu a fecundação.

Há desejos que tentam ser assumidos, há ideias, há movimento. Forças antagônicas e ao mesmo tempo concêntricas.

Um útero que se resguarda, que aguarda. Alma de bituca, de tocaia. À espreita.

Quarentena.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

arqueologia de mim mesma (II)

Do grego arkhaiología - história relativa à antiguidade.

Tratando-se da história relativa à antiguidade, posso portanto, tratar da antiguidade relativa ao sujeito histórico. No caso, eu, e a antiguidade que cabe em mim.

Neste exercício de arqueóloga, nesta brincadeira de descobrir vestígios, tenho encontrado espelhos, e tento reconhecer-me neles. Mas só encontro espelhos quebrados, pedacinhos, e sou obrigada a me ver fragmentada. Nem sempre a parte representa o todo.

Surgem, nos pedacinhos dos espelhos, pedaços de mim, de alguém que eu fui-sou-serei, mas ainda não conheço - ou esqueço.

Quebra-cabeça de lógica oculta, ainda não descobri a chave para resolver o desafio.

Vou seguindo, trocando a enxada pelo pincel, a máscara pela lupa.

domingo, 22 de abril de 2012

Meia noite em Paris, ou no Rio de Janeiro

Desde que assisti ao filme Meia Noite em Paris, de Woody Allen, que fico sonhando com esta experiência, em variados lugares no Brasil. Quando fui à Diamantina, no ano passado, ficava andando à noite pelas ruas de pedra daquela cidadezinha mágica, imaginando que ao soar das doze badaladas do sino da igreja, veria passar por mim o Comendador João Fernandes ou a bela Xica da Silva, para reuniões secretas que agitavam as mudanças que aconteciam naqueles cantos de Minas Gerais no século XVIII. Sonhei com isso todas as noites em que estive passeando pelas cidades históricas.

Enquanto assistia ao filme, traçava, em minha cabeça, paralelos com o centro da cidade de São Paulo, imaginava os modernistas na década de 20 se reunindo, bebendo, conversando, tramando o evento do Teatro Municipal. Vislumbrava a beleza abandonada e triste do centro velho da metrópole, tão charmoso, com tanta intimidade resguardada em suas calçadas.

A mesma sensação tive nos últimos dias, enquanto lia o livro de Paulo Lins, "Desde que o samba é samba". A trama se passa nos anos 20, no Estácio, Rio de Janeiro, período logo após a Revolta da Vacina e a campanha de "limpeza" da Cidade Maravilhosa, expulsando para os morros tudo o que poderia "manchar" o cartão postal da cidade. Curiosamente, é no morro que a identidade deste cartão postal brasileiro se constrói, da mistura do Candomblé, da capoeira, da Umbanda que está surgindo como religião que reúne os saberes de todos os povos, da malandragem da zona, da mistura do lundu e do jongo com a polca e o maxixe. Este é o palco do livro de Paulo Lins, que nos conduz, entre ficção e história, pelas composições de Ismael Silva, pelas armações de Francisco Alves na compra das parcerias com os compositores do morro, pelas festas perseguidas pela polícia, e até aos intelectuais paulistas que encontravam na música recém-inventada aquilo que desejavam em seus manifestos.

Fui lendo e repassando em minha cabeça os poucos caminhos que conheço na cidade do Rio, alguns endereços famosos - imortalizados nas letras dos sambas -, algumas histórias que viraram lenda, e imaginando como seria aquele tempo, como tudo aconteceu. Um passeio que na verdade iniciei com outro livro, "Mandingas da mulata velha na cidade nova", do mestre Ney Lopes, que conta do período anterior a este: a chegada dos baianos à capital do país, e a constituição das primeiras comunidades negras, forras, na mistura de filhos de santo e de Maomé, com segredos de cozinha e de santo, embalados com muita música e magia.

Os dois livros são como mitos contados por griôs contemporâneos, mitos de um tempo e um lugar que parecem não ter passado: estão lá, fechados em uma caixinha, à espera daqueles que têm a chave para entrar neste mundo.

Da próxima vez que eu for ao Rio, vou ficar esperando o carro passar depois das badaladas da meia noite... quem sabe tenho sorte.

***

Em tempo: a coleção Ponta de Lança, da editora Língua Geral, é simplesmente deliciosa! O livro do Ney Lopes é apenas um dentre uma seleção de autores lusófonos contemporâneos, com edições muito belas, e textos saborosíssimos. Confesso que comprei o primeiro pela edição, mas já perdi a conta de quantos títulos li!

terça-feira, 17 de abril de 2012

Samba da Vela

Quem nasceu e viveu em cidade grande talvez não entenda o que eu quero dizer. Quem nunca se sentiu pertencente a um grupo, um lugar, uma causa, também não.

Eu, que tenho me tornado um ser meio sem parada nos últimos tempos, tenho tido cada vez mais dificuldade em me sentir "em casa" nos lugares que frequento.

Sentir-se em casa implica várias coisas. É a familiaridade com o lugar, com as pessoas, com o assunto. É ser acolhido, perceber-se bem vindo, mesmo que ninguém o diga. É fazer parte, de alguma forma, ainda que não se faça nada - basta estar.

Ter esta experiência nesta cidade enorme que é São Paulo é raro - e privilegiado. Não sei se é assim para quem vive em bairros mais populares, onde as pessoas se conhecem e formam uma comunidade, mas para quem é forasteiro e vive nas regiões mais adensadas e impessoais - como eu - isso é muito, mas muito difícil. Tenho a impressão, às vezes, que se eu desaparecer, ninguém vai dar pela minha falta.

Toda esta volta, esta introdução, é para falar da simpatia e carinho que tenho pela Comunidade do Samba da Vela. Numa segunda-feira à noite, um espaço público lindo, como a Casa da Cultura de Santo Amaro, é ocupada por gente que quer celebrar a boa música, a beleza da palavra, da melodia, e - o mais belo - o encontro e a alegria da partilha desta beleza. E este ambiente, acolhedor e familiar, aceita com muita espontaneidade e generosidade gente "de fora", como eu.

Falar da alegria da roda de compositores, da magia que existe cada vez que um samba "pega" entre os músicos e o público, é insuficiente. Tem que estar lá para ver. Vozes tímidas que são impulsionadas por outras mais experientes, vozes pra lá de experientes que dão o tom aos mais novos... gente que toma coragem e traz para o centro da roda seus sentimentos, seus pensamentos, e, por que não?, suas piadas e brincadeiras. O arranjo que surge ali, no meio da descoberta, o samba que de repente se torna de todos - e o compositor é tomado pela surpresa de ver seu filho crescer e tomar forma própria.

Para o público, é sempre um privilégio conhecer os compositores, os personagens deste movimento que mantém a chama do samba acesa pelo país, apesar de todas as dificuldades. Para mim, que descobri na roda de samba um alimento para a alma - é quase uma transfusão de sangue! - frequentar uma roda de compositores é oportunidade de fartar-me, provar de iguarias únicas. E além disso, ser recebida por olhares simpáticos, sorrisos, cumprimentos simpáticos. Compartilhar sinais de aprovação, empolgação, aplausos por vezes emocionados. Eu fico olhando ao redor, tentando saber se todas as pessoas se conhecem, e reconheço olhares estrangeiros como eu, igualmente felizes por poder participar daquela celebração.

Vida longa, minha gente, à celebração da vida, do samba, da cultura popular brasileira! Vida longa ao Samba da Vela!


sexta-feira, 6 de abril de 2012

arqueologia de mim mesma (I)


Acho que estou fazendo uma arqueologia de mim mesma. O que procuro? Ainda não sei. Mas estou no processo de busca.
Ainda estou estudando o terreno, examinando o material. Ainda nem cheguei no pincelzinho, nas peças.
Mas vou com cuidado. Sou desastrada demais pra sair com a enxada em punho; vou fazer buracos maiores do que o necessário, acertar peças frágeis.
Dizem que tudo isso é culpa do tal retorno. Culpa de Saturno.
Com ou sem culpados, sigo eu brincando de arqueóloga.
Vamos ver onde isso vai dar.

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Oficina de Brinquedos e Brincadeiras

Sexta-feira. Chegamos à uma nova escola. Por fora, muito parecida com a da semana anterior. Por dentro... quem é que sabe? Pego minha caixa de materiais, minhas varas de pesca e vou descobrir onde fica a sala com a qual vou trabalhar. Pelo caminho, olhinhos curiosos querem saber quem são essas pessoas que chegam com tantas coisas, com tanto barulho, e se dirigem apressadas e aos risos pelos corredores da escola. Tudo o que esses olhinhos sabem é que hoje vai ser um dia diferente.
Isto também sei eu. A cada semana, um novo planejamento se impõe: crianças em maior ou menor número, com idades diferenciadas, espaço mais ou menos amplo, realidades sociais distintas. Ao longo das dez semanas, vou me dando conta que o planejado é apenas um ponto de partida, e que é imperativo estar aberta às mudanças possíveis. Algumas vezes o tempo é muito, mas na maior parte delas, passa voando! Também era assim quando eu era menina; o tempo de brincar sempre acabava logo... E brincar nunca tem regra: sempre surge uma nova brincadeira, uma nova possibilidade, uma outra vontade... É difícil ser o adulto e ter de se lembrar do relógio, dos combinados...

“Com licença, professora, posso entrar?” “Tia, pra que essas varas? A gente vai pescar? Mas aqui na escola não tem rio!” “Ai, sua boba, ela sabe disso, né?” “ A gente vai brincar? Do quê?”.

Ovo choco/ está rachado/ quem rachou/ foi a galinha/ corre cutia/ na casa da tia/ corre cipó/ na casa da vó/ lencinho branco/ caiu no chão/ posso pôr?/ pode, sem demora/ na panela de amora/ um, dois, três/ fecha o olho de uma vez/ que não é a sua vez!/ Inglês!
(lá na rua 23!/ Chinês!/ Japonês!/ Espanhol!)

Arrastar as carteiras, fazer uma roda. Às vezes é bem fácil, noutras um pouco mais difícil; depende da turma, do horário. Crianças calmas, tranqüilas, agitadas, irritadas, felizes, espontâneas, tristes, acuadas. Em dez semanas, um universo inteiro. Em alguns minutos, uma pincelada das cores que pintam aquele espaço diariamente,

Lá em cima do piano/ tem um copo de veneno/ quem bebeu morreu/ o azar foi seu!

“Distribui os copinhos pra mim? Dois para cada um.” “Professora, o que vamos fazer com isso?” “O que vocês acham?” “Carrinho! Telefone sem fio! Óculos! Alto-falante! Tomar café!”
 

Para fazer o ioiô, é preciso a ajuda do companheiro, e é preciso esperar que a fita colorida que se escolheu chegue às suas mãos. Quando digo isso, as professoras me olham incrédulas, achando impossível que as crianças esperem. Com um pouco de paciência - muito mais dos adultos em esperar que as crianças se organizem sozinhas, do que delas próprias -, o trabalho vai caminhando; é muito mais fácil e divertido fazer junto. Nas salas em que há crianças especiais, a ajuda é sempre espontânea, mas sem exageros; eles sabem a medida. Fazemos o ioiô, e a grande farra é aprender a lançá-lo, brincar em frente ao ventilador ligado, descobrir outros movimentos possíveis. Não digo o nome do brinquedo de propósito, e as crianças começam a nomeá-lo: pião voador, ioiô, disco voador, carretel, aviãozinho, helicóptero.

O caminhão de laranjas passou por aqui?/ Passou./ Quantas laranjas você comprou?/ Cinqüenta mil! (risos) Tá bom, vai... Oito!

Alguém entrega duas tampinhas para cada um, um pedaço de barbante; as tampinhas já estão furadas. Peço às crianças que passem o barbante pelos furos da tampinha como suas mães fazem para pregar botão, e eles acham graça. Na hora de dar o nó, descubro que muitas crianças ainda não sabem amarrar. “E quem amarrou seu tênis antes de você vir pra escola?” “Meu tênis não tem cadarço!!! (risos)” 

Antes que todos terminem, algumas crianças já descobriram o brinquedo e estão mostrando às outras como se faz . Conto que o corrupio é um brinquedo muito antigo e que, com certeza, seus pais e seus avós brincavam com ele também. Ouço risadas e carinhas espantadas me indagam: “minha mãe brincava???” 


Percebo que o movimento do corrupio não é tão simples para as crianças menores, e descubro que não sei como lhes mostrar... começo a brincar com um por um, passando para suas mãos enquanto ainda gira, quem sabe assim eles conseguem continuar... com alguns dá certo, com outros não; tenho que ser insistente e cuidar de não passar a minha ansiedade para o menino que apenas espera o momento de aprender. Elas se ajudam e, no fim, todos conseguem. Há as que se encantam com o zunido, outras se deliciam em ver o barbante se comportar como um elástico. Duas meninas tranformam o corrupio em vai-vem. Outras fazem dele colar, e quase todas as crianças fazem o mesmo.

“E as varinhas? A gente não vai brincar com elas? O que a gente vai fazer? Vai levar pra casa? Cadê os peixes? A gente vai pescar?”

Pegamos as folhas de jornal e começo a explicar a seqüência de dobras. A cada nova dobra, um novo brinquedo se configura: um leque, uma manga de paletó, um chapéu de cozinheiro, o chapéu do Papa, um peixe com uma enorme boca. Elas inventam rabos das mais variadas formas, e começam a dar vida a cada peixe. Surgem peixes com cabelos, línguas, olhos, barbatanas... “peixas” com laçarotes, cílios compridos, bochecha pintada...

“Vou fazer uma peixa!” “Mas você é menino, não pode!” “Por que não? Tia, eu posso fazer uma peixa?”

As cores vão aparecendo, tímidas em alguns brinquedos, explosivas em outros. Alguns delicados, com pedacinhos pequenos de crepom que vão compondo mosaicos coloridos no corpo do peixe. Outros, com largas tiras sobrepostas e franjas que voam com o vento. Corações, a letra do nome, a bandeira do Brasil, figuras geométricas, escamas multi-coloridas...

“É um peixe-pipa! É um pipa!!!”

Com a ajuda da professora, vou amarrando os cabrestos e prendendo os peixinhos nas varas de pesca. As outras salas também já estão finalizando,e a quadra da escola vai, aos poucos, sendo povoada de cores e franjas, coloridos peixes voadores que ocupam o céu. Com eles, os desejos e sonhos das crianças voam juntos, empurrados pelo vento típico desta época do ano...

“Tia, você vai voltar? Amanhã você vem? Ah, não vai embora agora não, vamos brincar mais!”

Fim de mais uma oficina. Enquanto guardo meus materiais em minha caixa, vou guardando em mim o olho que brilhou ao ver seu brinquedo pronto, o rostinho sapeca rindo do som do corrupio, cada um dos beijos carinhosos que recebi, e os olhares de cumplicidade no momento da brincadeira, que só quem brinca de verdade compartilha. E essa é a melhor parte.

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Este texto foi publicado em um caderno do Instituto Tomie Ohtake, em 2006. Gosto muito dele. Quando o leio, lembro da minha alegria em brincar com as crianças. Tenho sentido falta disso na minha vida.


domingo, 25 de março de 2012

terra, semente, outono

E, de repente, aquela sombra, aquela garoa começa a fazer sentido. A neblina parece querer dissipar-se.
Parece que o tempo do outono, que parecia inverno prematuro, começa, enfim, a preparar a primavera.
Tempo de escolhas de sementes, preparo da terra, produção do adubo. Tempo de escolhas... o que plantar?
Tirar a casca do solo, revolver a terra, descobrir que sementes dormem sob a folhagem seca.
Por que o jardim secou? Ele deixou de florescer, e eu nem me dei conta. E agora, como fazê-lo reviver?
Nada é exatamente como já foi... era um jardim desses de casa antiga, da roça, meio tudo-junto-e-misturado... com o passar do tempo, os gostos, o olhar, o conhecimento, tudo isso se apura, e o jardim será planejado.
Há que se olhar para a sombra e para o sol. Calcular o tempo necessário de cada um, em razão das espécies escolhidas. Será que dá para ter espécies tão diferentes no mesmo espaço? E as espécies pioneiras, que preparam o caminho para as outras, que serão definitivas?
Ainda é outono, e haverá tempo para tanta preparação. Só não há mais tempo para hesitação.
A terra está prenhe. E os olhos descobertos. 

20
(foto extraída de http://www.flickr.com/photos/gadl/6813800836/in/photostream/)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Descobertas

Ela assistiu ao teatro, pela primeira vez.
E saiu encantada, do alto dos seus 6 anos. Tirou foto com os atores, recontou a história toda.
Algumas horas depois, enquanto eu conversava com seu pai, ela me pergunta:
- O nome dela era Aurora mesmo?
- Sim. O que você acha?
- Mesmo?
- Mesmo.
Ficou silenciosa, brincando com a comida no prato, e nós seguimos conversando, assunto de adulto.
- Mas, tia Fê, o nome dela é Aurora do mesmo jeito que o seu nome é Fernanda?
Jeito fofo de entender o teatro.
Escrevo porque transbordo.
Um porção de sentimentos toma conta de mim, e eu já não sei mais nomeá-los ou diferenciá-los.
Pode ser que eu esteja carente demais.
Pode ser o cansaço, que beira o extremo, o máximo do que eu já experimentei.
Podem ser as cervejas, depois de tanto tempo de abstenção.
O fato é que transbordo, e já não sei nomear o que vai dentro de mim.

Por hora sinto-me triste, de tristezas alheias que me dominam. Queria ser grande para abarcá-las, forte para destrui-las, corajosa o suficiente para assumi-las. Não posso. Sou humana, e, como tal, covarde.

Sinto-me também diminuída, ego ferido, menosprezada. Nada que uma boa roda de samba não cure. Mas o carnaval está me dando trabalho, e preguiça. Muita preguiça.

Quero o mar. Ah, como eu o desejo.

Vontade de amar, e ser amada. Desejo de gerar. Filhos, projetos, realizações. Não consigo definir. Desejo de ser mãe, sejá lá do que for.

Pergunto-me se não estou agindo como uma adolescente mimada, e se não estou ignorando o meu papel no mundo. Mas não sei que papel é esse, que lugar é esse, a que eu vim, o que esperam de mim. Comporto-me, às vezes, como uma criança perdida. Outras vezes, como uma velha que se esqueceu de morrer.

Mal humor, euforia, entusiasmos, descrédito. Tantas variações, em tão pouco tempo. Horas.

Quero o céu. E a Lua. Cheia, redonda, imensa. E São Jorge, e o dragão. Eu os quero, inteiros, só para mim.

Se estou eu inteira, já não sei dizer. Sou pedaços, fragmentos, indícios. Em que parte da vida eu deveria estar? Alguém me responda, por favor, porque eu já não o sei

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

E eu encarei todos os meus senões,
vírgulas e reticências,
todos os temores.

E caminhei rumo ao precipício
e me joguei
mesmo sabendo que poderia não haver nada
nada nem ninguém para me segurar lá embaixo.

A vertigem da queda
a delícia do deslocamento
rápido, intenso, confuso
o vento, o tremor do corpo,
o enjôo da vertigem.

A viagem, breve, fugaz
efêmera
e deliciosa.

Agora a lembrança,
a sensação que meu corpo rememora
o tremor, a falta de ar

e a vontade de me jogar de novo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Melancolia tem sido uma palavra muito presente em meu vocabulário, em meus pensamentos, em minha auto-percepção.

Fase, momento, necessidade? Não sei. Só sei que tenho uma vontade imensa de ficar sozinha, quieta, ausente. Parece que tudo faz barulho demais, um barulho à toa, um desperdício de energia.

A vida lá fora me dá uma preguiiiiiça...

Sinto-me às vezes como uma para-raios, uma antena parabólica desregulada, que capta tudo o que não é da sua conta. Sinto um cansaço e uma tristeza que parecem não ser meus, mas me afetam.

O mundo às vezes cansa.

E sei que, daqui há pouco, sem mais nem menos, este sentimento vai embora, eu fico radiante sem ter porquê, e ninguém sequer percebe.

Lua minguante, conjunção astral, hormônios, sei lá. Saudade, carência, desejo de colo, talvez. Só sei que o sentimento é esse.


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Peixes

Por que eu acho que sempre faço as coisas do jeito mais difícil?
E quando eu não faço, o caminho mais fácil era ter feito...
Ai, alma pisciana!

domingo, 15 de janeiro de 2012

Ser chuva

Necessidade de transbordar, conjugando o verbo em todas as pessoas e seus tempos.
Eu transbordo, tu transbordas, ele transborda.
No presente, no pretérito perfeito, no gerúndio, no particípio.
Transbordando, sou eu.
No futuro, quem sabe? Transbordarei.
Esparramando, espalhada, repleta, para todos os lados.
Chovendo, pingando, respingando em quem se permitir.
Tempestade numa tarde quente de verão.
Roupa e cabelos molhados, colados no corpo, no rosto, nas costas.
Transbordada.
De mim mesma, que chovo, contrariando a gramática.
Chover é verbo impessoal.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Uma conversa despretensiosa me deixou perturbada.
O pensamento vai e volta, encontra situações, busca explicações.
A razão tenta me convencer que nada disso faz sentido, e, mais ainda, não é da minha conta, não me diz respeito.
Mas fico triste. Muito.
Volto às minhas indagações do porque das pessoas fazerem parte da vida da gente. O acaso existe? Ou as linhas já estão traçadas antes de sabermos escrever?
E, se algum dia você teve alguém sob os seus cuidados, basta ir embora?
A distância é tanta, a mágoa foi tamanha, que nem sei se tenho o direito de me preocupar - se é da minha conta. Um sentimento de impotência tão estranho.
Tristeza. Muita.
Minha cabeça vai rodar muito ainda até me deixar dormir esta noite.

Decepção, impotência

Alguém que um dia fez parte tão intensamente da nossa história, nunca vai deixar de fazê-lo. Entristece-me muito saber que alguém que amei e com quem dividi meus sonhos, deixou de sonhar. Está se auto-destruindo, auto-flagelando, matando-se dia após dia.

Será o passado que o atormenta?

Será a dor que nunca teve coragem de encarar?

Até quando ele vai fugir de si mesmo?

Por quanto tempo ainda vai se enganar?

A vida nos deu de presente uma chance de ouro - doída, de uma dor infinita - para mudar a maneira de olhá-la. Porque insistir na miopia, por quê?

Sinto em mim um vazio, um misto de decepção, tristeza, impotência. Se tanto dele ficou em mim - sua perspicácia, sua inteligência, sua doçura - será que nada de mim ficou nele?

Queria que o meu desejo de vida, de superação, de amor por mim mesma, fosse aquilo que ficou na composição do mosaico. Mas, pelo visto, tudo foi renegado.