sexta-feira, 6 de abril de 2012

arqueologia de mim mesma (I)


Acho que estou fazendo uma arqueologia de mim mesma. O que procuro? Ainda não sei. Mas estou no processo de busca.
Ainda estou estudando o terreno, examinando o material. Ainda nem cheguei no pincelzinho, nas peças.
Mas vou com cuidado. Sou desastrada demais pra sair com a enxada em punho; vou fazer buracos maiores do que o necessário, acertar peças frágeis.
Dizem que tudo isso é culpa do tal retorno. Culpa de Saturno.
Com ou sem culpados, sigo eu brincando de arqueóloga.
Vamos ver onde isso vai dar.

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Oficina de Brinquedos e Brincadeiras

Sexta-feira. Chegamos à uma nova escola. Por fora, muito parecida com a da semana anterior. Por dentro... quem é que sabe? Pego minha caixa de materiais, minhas varas de pesca e vou descobrir onde fica a sala com a qual vou trabalhar. Pelo caminho, olhinhos curiosos querem saber quem são essas pessoas que chegam com tantas coisas, com tanto barulho, e se dirigem apressadas e aos risos pelos corredores da escola. Tudo o que esses olhinhos sabem é que hoje vai ser um dia diferente.
Isto também sei eu. A cada semana, um novo planejamento se impõe: crianças em maior ou menor número, com idades diferenciadas, espaço mais ou menos amplo, realidades sociais distintas. Ao longo das dez semanas, vou me dando conta que o planejado é apenas um ponto de partida, e que é imperativo estar aberta às mudanças possíveis. Algumas vezes o tempo é muito, mas na maior parte delas, passa voando! Também era assim quando eu era menina; o tempo de brincar sempre acabava logo... E brincar nunca tem regra: sempre surge uma nova brincadeira, uma nova possibilidade, uma outra vontade... É difícil ser o adulto e ter de se lembrar do relógio, dos combinados...

“Com licença, professora, posso entrar?” “Tia, pra que essas varas? A gente vai pescar? Mas aqui na escola não tem rio!” “Ai, sua boba, ela sabe disso, né?” “ A gente vai brincar? Do quê?”.

Ovo choco/ está rachado/ quem rachou/ foi a galinha/ corre cutia/ na casa da tia/ corre cipó/ na casa da vó/ lencinho branco/ caiu no chão/ posso pôr?/ pode, sem demora/ na panela de amora/ um, dois, três/ fecha o olho de uma vez/ que não é a sua vez!/ Inglês!
(lá na rua 23!/ Chinês!/ Japonês!/ Espanhol!)

Arrastar as carteiras, fazer uma roda. Às vezes é bem fácil, noutras um pouco mais difícil; depende da turma, do horário. Crianças calmas, tranqüilas, agitadas, irritadas, felizes, espontâneas, tristes, acuadas. Em dez semanas, um universo inteiro. Em alguns minutos, uma pincelada das cores que pintam aquele espaço diariamente,

Lá em cima do piano/ tem um copo de veneno/ quem bebeu morreu/ o azar foi seu!

“Distribui os copinhos pra mim? Dois para cada um.” “Professora, o que vamos fazer com isso?” “O que vocês acham?” “Carrinho! Telefone sem fio! Óculos! Alto-falante! Tomar café!”
 

Para fazer o ioiô, é preciso a ajuda do companheiro, e é preciso esperar que a fita colorida que se escolheu chegue às suas mãos. Quando digo isso, as professoras me olham incrédulas, achando impossível que as crianças esperem. Com um pouco de paciência - muito mais dos adultos em esperar que as crianças se organizem sozinhas, do que delas próprias -, o trabalho vai caminhando; é muito mais fácil e divertido fazer junto. Nas salas em que há crianças especiais, a ajuda é sempre espontânea, mas sem exageros; eles sabem a medida. Fazemos o ioiô, e a grande farra é aprender a lançá-lo, brincar em frente ao ventilador ligado, descobrir outros movimentos possíveis. Não digo o nome do brinquedo de propósito, e as crianças começam a nomeá-lo: pião voador, ioiô, disco voador, carretel, aviãozinho, helicóptero.

O caminhão de laranjas passou por aqui?/ Passou./ Quantas laranjas você comprou?/ Cinqüenta mil! (risos) Tá bom, vai... Oito!

Alguém entrega duas tampinhas para cada um, um pedaço de barbante; as tampinhas já estão furadas. Peço às crianças que passem o barbante pelos furos da tampinha como suas mães fazem para pregar botão, e eles acham graça. Na hora de dar o nó, descubro que muitas crianças ainda não sabem amarrar. “E quem amarrou seu tênis antes de você vir pra escola?” “Meu tênis não tem cadarço!!! (risos)” 

Antes que todos terminem, algumas crianças já descobriram o brinquedo e estão mostrando às outras como se faz . Conto que o corrupio é um brinquedo muito antigo e que, com certeza, seus pais e seus avós brincavam com ele também. Ouço risadas e carinhas espantadas me indagam: “minha mãe brincava???” 


Percebo que o movimento do corrupio não é tão simples para as crianças menores, e descubro que não sei como lhes mostrar... começo a brincar com um por um, passando para suas mãos enquanto ainda gira, quem sabe assim eles conseguem continuar... com alguns dá certo, com outros não; tenho que ser insistente e cuidar de não passar a minha ansiedade para o menino que apenas espera o momento de aprender. Elas se ajudam e, no fim, todos conseguem. Há as que se encantam com o zunido, outras se deliciam em ver o barbante se comportar como um elástico. Duas meninas tranformam o corrupio em vai-vem. Outras fazem dele colar, e quase todas as crianças fazem o mesmo.

“E as varinhas? A gente não vai brincar com elas? O que a gente vai fazer? Vai levar pra casa? Cadê os peixes? A gente vai pescar?”

Pegamos as folhas de jornal e começo a explicar a seqüência de dobras. A cada nova dobra, um novo brinquedo se configura: um leque, uma manga de paletó, um chapéu de cozinheiro, o chapéu do Papa, um peixe com uma enorme boca. Elas inventam rabos das mais variadas formas, e começam a dar vida a cada peixe. Surgem peixes com cabelos, línguas, olhos, barbatanas... “peixas” com laçarotes, cílios compridos, bochecha pintada...

“Vou fazer uma peixa!” “Mas você é menino, não pode!” “Por que não? Tia, eu posso fazer uma peixa?”

As cores vão aparecendo, tímidas em alguns brinquedos, explosivas em outros. Alguns delicados, com pedacinhos pequenos de crepom que vão compondo mosaicos coloridos no corpo do peixe. Outros, com largas tiras sobrepostas e franjas que voam com o vento. Corações, a letra do nome, a bandeira do Brasil, figuras geométricas, escamas multi-coloridas...

“É um peixe-pipa! É um pipa!!!”

Com a ajuda da professora, vou amarrando os cabrestos e prendendo os peixinhos nas varas de pesca. As outras salas também já estão finalizando,e a quadra da escola vai, aos poucos, sendo povoada de cores e franjas, coloridos peixes voadores que ocupam o céu. Com eles, os desejos e sonhos das crianças voam juntos, empurrados pelo vento típico desta época do ano...

“Tia, você vai voltar? Amanhã você vem? Ah, não vai embora agora não, vamos brincar mais!”

Fim de mais uma oficina. Enquanto guardo meus materiais em minha caixa, vou guardando em mim o olho que brilhou ao ver seu brinquedo pronto, o rostinho sapeca rindo do som do corrupio, cada um dos beijos carinhosos que recebi, e os olhares de cumplicidade no momento da brincadeira, que só quem brinca de verdade compartilha. E essa é a melhor parte.

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Este texto foi publicado em um caderno do Instituto Tomie Ohtake, em 2006. Gosto muito dele. Quando o leio, lembro da minha alegria em brincar com as crianças. Tenho sentido falta disso na minha vida.


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